Lewis e Freud: reflexões sobre o problema do sofrimento

As Crônicas de Nárnia é uma obra genial. Uma das minhas partes favoritas está bem no início de O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa. Os irmãos estão brincando de esconde-esconde na mansão e a pequena Lúcia entra numa sala onde havia um guarda-roupa antigo, o esconderijo perfeito. Ela observa aquele móvel de madeira enorme e anda devagar até ele, admirando-o com olhinhos cheios de curiosidade. Lúcia, então, abre aquela porta pesada e entra no guarda-roupa, mas ela descobre que aquilo era, na verdade, um portal para algo muito maior, um universo novo e incrivelmente belo. Por trás daquela porta pesada de madeira, estavam escondidos os segredos da terra de Nárnia… 

Embora C. S. Lewis (1898-1963) tenha ficado mais conhecido por ter escrito As Crônicas de Nárnia, ele também escreveu obras de teoria literária e de teologia cristã. Depois que ele abandonou o ateísmo e se tornou cristão, sua habilidade única com as palavras fez com que ele se tornasse um porta-voz brilhante do Cristianismo diante de uma sociedade sem alento depois de duas grandes guerras mundiais. O seu primeiro livro de teologia cristã foi O Problema do Sofrimento, onde ele relata um pouco da sua trajetória no ateísmo, explicando que a existência do sofrimento havia sido o principal obstáculo que o impedia de acreditar em Deus.
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“Há poucos anos, quando eu era ateu, se alguém me perguntasse: “Por que você não crê em Deus?” minha resposta teria sido mais ou menos esta: Veja o universo em que vivemos. (…) A história dos seres humanos é, na sua maior parte, um registro de crimes, guerras, doenças e terror, com apenas aquela pitada de felicidade suficiente para dar-lhes, enquanto dura, um medo agoniado de perdê-la; e, quando ela se perde, a miséria pungente da lembrança. (…) Se você me pedir para acreditar que esta é a obra de um espírito bondoso e todo-poderoso, replico que toda evidência aponta na direção oposta.”
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Sigmund Freud (1859-1939) também via no sofrimento um forte argumento contra a existência de Deus. Ele dedicou sua vida a batalhar duramente contra a visão de mundo religiosa, e seus escritos geniais e incisivos tiveram um papel importante na secularização da nossa cultura. No século XX, de um lado, ateus do mundo inteiro passaram a se basear no pensamento de Freud e, do outro lado, cristãos de todos os lugares tinham Lewis como uma referência intelectual.

A vida de Lewis e de Freud, embora separada por meio século, tem vários paralelos interessantes: eles demonstraram dons intelectuais extraordinários ainda na infância, foram instruídos desde cedo na fé da sua família, tornaram-se ateus na adolescência, influenciados por seus professores, tornaram-se representantes das suas visões de mundo (Freud como ateu e Lewis como cristão) e ambos tiveram experiências profundas de dor e sofrimento desde cedo em suas vidas e constantemente buscavam explicar essas experiências à luz da cosmovisão que tinham.

Freud sofreu muito. Ele perdeu pessoas muito queridas, uma contínua experiência de luto que contribuiu para que ele ficasse obcecado, temeroso e supersticioso com a morte. Ele também enfrentou a hostilidade nazista em Viena, onde frequentemente tentavam convencê-lo de que deveria se sentir inferior e estranho pelo fato de ser judeu. Aos 67 anos, Freud observou algo diferente no céu da boca e logo deduziu que poderia ser um tumor, porque ele fumava vários maços de cigarro por dia. Alguns exames foram feitos e os médicos concluíram que aquilo era um câncer no palato. No passar dos anos, Freud foi submetido a 33 cirurgias, e em uma dessas os cirurgiões cortaram fora o seu céu da boca e instalaram uma prótese de metal para separar a cavidade nasal da boca. Atividades básicas como respirar e comer se tornaram tarefas extremamente difíceis. Certa vez, em um café-da-manhã com sua filha Anne, a ferida abriu e sangue jorrou da sua boca! Todo esse sofrimento acompanhou Freud nos últimos 16 anos da sua vida.

Lewis também sofreu muito, Ele perdeu sua mãe na infância, para o câncer, e teve que “engolir” o silêncio de Deus diante das suas frequentes orações para curá-la (isso serviu de base para o seu ateísmo por muito tempo). Também viu inúmeros amigos morrerem no front da Primeira Guerra Mundial, na qual serviu como soldado. Ele também enfrentou a perda da sua amada esposa Joy, também para o câncer. Sobre esse último fato, talvez o mais doloroso de todos, Lewis disse: “no momento, estou aprendendo a andar de muletas. Quem sabe, nesse mesmo instante, eu ganhe uma perna de pau. Mas jamais serei um bípede de novo”. Ele escreve o livro Anatomia de uma dor relatando como ele se sentiu.

De fato, o problema do sofrimento foi um dos fatores mais relevantes para que Freud e Lewis se tornassem ateus. Afinal, se Deus é soberano, se Ele realmente é encarregado do Universo, e se Ele realmente me ama, como pode permitir que eu sofra tanto? Ou Ele não existe, ou não está no controle, ou realmente não se importa. Freud concluiu que Deus não existe. Lewis também pensava dessa maneira, até que aos 33 anos ele passou a olhar a questão de outra forma.

A visão de Freud

Para Freud, a existência do sofrimento é incompatível com a existência de Deus. Certa feita, Freud perguntou ao seu amigo pastor Oskar Pfiester: “Como diabos você consegue conciliar todas as experiências pelas quais passamos e chegamos a esperar desse mundo com essa sua suposição de que haja uma ordem moral? Poderes obscuros, sem sentimentos, sem amor, determinam o destino do homem.”  Para Freud, num mundo como o nosso, não pode haver Deus, nem propósito, nem ordem, nem sentido. Segundo Peter Gay (Um judeu sem Deus, 1992), um dos maiores biógrafos de Freud, “foi em grande parte devido ao seu ateísmo que Freud se tornou um psicanalista”. Freud foi um positivista no sentido mais pleno, acreditava que um dia a ciência avançaria a um ponto em que a religião não seria mais necessária.

A religião não passa de uma ilusão (O futuro de uma ilusão, 1927), é a expressão de uma necessidade intensa do ser humano causada pela ausência paterna, um desamparo infantil reeditado na vida adulta (O mal-estar na civilização, 1930). A espiritualidade tem um papel sociológico e psicológico importante, mas apenas enquanto horizonte utópico, convencionado para fornecer sensações de esperança e de completude. Deus não criou o homem, mas o homem cria seus deuses ao projetar seus anseios por um pouquinho menos de sofrimento.

Qualquer palavra de esperança é ilusória. Para Freud, a cura está na conformidade, na resignação, na aceitação da realidade, na consciência da morte. Em outras palavras, cresça e encare a dura realidade de que estamos sós no universo. Admita a imensidão desse desespero, aprenda a conviver com as necessidades do destino. Há pouco consolo nessas palavras, isso é verdade, mas para Freud isso é melhor do que ficar preso a esperanças falsas. A religião pode produzir algum alívio momentâneo, mas não muito mais que isso. A visão de mundo espiritual é uma fraude.

O cientificismo e o materialismo moldaram a percepção de Freud sobre o sofrimento. No fim da sua vida, ele escreveu: “já que sou profundamente irreligioso, não há ninguém que eu possa acusar, e sei que não há lugar ao qual eu pudesse remeter a minha queixa. Posso sentir lá no fundo uma ferida narcisista que jamais será curada (…) agora nada mais há que tortura, nada mais faz sentido”.

A visão de Lewis

Aos 33 anos, Lewis saiu do ateísmo e se converteu à fé cristã, jornada espiritual narrada por ele mesmo no livro “Surpreendido pela Alegria”. O sofrimento, que serviu para negar a existência de Deus, passava agora a prová-la. Ninguém percebe que uma linha está torta se não tiver em mente uma linha reta. Se nos queixamos de o Universo ser injusto e mau, temos que responder: de onde tiramos a nossa ideia de justiça e de bondade? Se tudo é relativo, não há sentido em ateus fazerem tantos juízos morais absolutos. Assim, ou o ateísmo é falso, ou nossos juízos morais absolutos são falsos. Mas ninguém parece querer abrir mão de fazer juízos morais absolutos. Então Lewis abriu mão do ateísmo, em virtude de este ser incapaz de conferir sentido à nossa experiência moral básica.

Em “Cristianismo Puro e Simples”, Lewis defende a ideia de que Deus criou todo o universo e escolheu criar criaturas dotadas de livre-arbítrio, ou seja, a capacidade de escolher entre fazer o certo e o errado, a capacidade de amar e de não amar. A analogia que Lewis faz nessa obra é que nós vivemos em um território ocupado por um rebelde, uma criatura que a princípio era boa, mas que, pelo mau uso da sua liberdade, afastou-se de Deus e depois corrompeu a humanidade inteira. Pense na história de Pinóquio. Bonecos de madeira eram importantes para Geppetto, mas ele agora queria um filho de verdade, infinitamente mais valiosos, a despeito da possibilidade de uma rebelião posterior. Na Bíblia, Deus não criou seres autômatos, mas sim seres humanos livres, capazes de amá-lo e de obedecê-lo. Assim, o primeiro casal desobedeceu livremente a Deus, fato que introduziu no mundo o pecado, o sofrimento e a morte.

O evangelho, assim, não pode ser um amontoado de regras que os perdidos devem obedecer para evitar a danação. Eles já mostraram que não conseguem obedecer esse tipo de lei. O evangelho é uma notícia acerca do que Deus fez para buscar e salvar aqueles que estavam perdidos. Por meio do sofrimento do corpo do seu Filho, Deus garantiu a nossa salvação. Na sua morte, encontramos vida. Jesus afirma: “no mundo tereis aflições, mas tendes bom ânimo, eu venci o mundo”. (João 16:33). Cristo jamais prometeu uma vida sem sofrimento aqui nesta terra, mas ele prometeu força suficiente para suportá-lo.

Deus parece ter boas razões para permitir o sofrimento no mundo. A célebre frase de Lewis expressa essa noção: “Deus sussurra e fala à consciência através do prazer, mas grita-lhe por meio da dor: a dor é o megafone divino para despertar um mundo adormecido”. Um pai disciplina seu filho porque o ama e porque quer vê-lo mais forte, mesmo que frequentemente ele não entenda os motivos da disciplina, por ser menos sábio que seu pai. Para Lewis, era muito claro que Deus faz isso o tempo inteiro e, devido à nossa limitação, nem sempre entendemos a disciplina divina.

Os fundamentos do Cristianismo moldaram a percepção de Lewis sobre o sofrimento. Nos seus últimos dias, Lewis escreveu a um amigo: “será que você não consegue encarar a morte como um amigo, um libertador? Teria sido esse mundo tão bom para você, que você o deixe com tanta tristeza? Se cremos que nosso lar é em outro lugar, qual o problema em ter a expectativa da chegada?”

E agora

Todos nós temos uma visão de mundo: a de Freud (em suas várias expressões) ou a de Lewis (em suas várias expressões). Uma começa com a premissa básica de que Deus não existe; a outra, com a premissa de que Ele existe. Se um está certo, o outro necessariamente estará errado. E que diferença faz saber quem está com a razão? Bem, faz diferença para a forma como interpretamos as experiências da nossa vida. Por isso, é importante explorar esses temas e se perguntar repetidamente: “será isso verdade?”

Para Freud, todo conceito de Deus não passa da projeção de um desejo infantil de proteção paterna contra as vicissitudes e sofrimentos da existência humana. Será isso verdade? Para Lewis, Deus é o Criador e Rei do universo, e tem bons motivos para permitir o sofrimento na nossa vida. Será isso verdade?

Afinal, no que você acredita? Isso tem te ajudado a lidar com os sofrimentos da sua vida? Com quem você pode conversar sobre essas questões? Você tem disposição para ir até onde as evidências te levarem? Essa busca é toda sua.

Eu comecei falando da cena em que Lúcia abre o guarda-roupa e entra em Nárnia. Bom, a questão sobre a existência de Deus é como a porta pesada do guarda-roupa. Por trás dela, estão escondidos os segredos do universo… E essa porta, bem, essa porta está a seu aguardo.

Lucas Martins é formado em Teologia, estudante de Filosofia e missionário da Cru Campus.


Leitura Sugerida

FREUD, Sigmund. Freud (1930-1933): o mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.

_____. Freud (1926-1929): o futuro de uma ilusão e outros textos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2014.

GAY, Peter, Um Judeu sem Deus: Freud, Ateísmo e a Construção da Psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Imago Editora, 2007.

K. H. K. WONDRACEK & D. JUNGE (orgs.). Cartas entre Freud & Pfister (1909-1939): Um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2009 (3. ed).

LEWIS, C. S.. Surpreendido pela Alegria. Viçosa, MG: Ultimato, 2015.

______, Anatomia de uma Dor. São Paulo, SP: Vida, 2006.

______, Cristianismo Puro e Simples. São Paulo, SP: Thomas Nelson Brasil, 2017.

______, O Problema do Sofrimento. São Paulo, SP: Vida, 2006.

NICHOLI, Armand. Deus em Questão: Sigmund Freud e C. S. Lewis discutem Deus, amor, sexo e o sentido da vida. Viçosa, MG: Ultimato, 2005.

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