Depressão e Cristianismo – Cristãos também enfrentam a depressão? – Parte 1

 

C. tem 40 anos. Casou-se com M, com quem compartilhou o sonho de construir uma vida repleta de sentido, filhos e estabilidade. Passou a trabalhar 80 horas por semana, e aos poucos, foi se percebendo distante de seus dois filhos e da sua esposa, procurando o álcool como válvula de escape em algumas situações. Passou a experienciar períodos de depressão e solidão cada vez mais intensos. A sensação era de estar sozinho. Havia momentos em que se sentia cheio do Espírito e com propósito, mas em muitos outros sentia Deus distante, sem conseguir perceber Sua presença, Seu amor, mesmo orando e estudando a Palavra. Passou a não conseguir dormir, não tinha vontade de comer e faltava-lhe energia até para as atividades básicas do dia a dia. Quando percebeu, pensamentos suicidas tornaram-se frequentes, o que o deixava com muito medo, por pensar que poderia cometer tal pecado contra Deus.

Histórias como a de C. não são incomuns na vida da igreja. Neste artigo, refletiremos sobre estigmas relacionados à depressão dentro da igreja, o que é a depressão, como um cristão deve lidar com uma situação como esta e como a comunidade de fé pode ser um grande instrumento no processo de restauração de pessoas com depressão.

Verdadeiros cristãos deprimem?
O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, tem uma necessidade inata de conexão. Todavia, nossas relações foram distorcidas devido à queda descrita no livro de Gênesis, capítulo 3. Como resultado, experimentamos a separação de Deus, dos nossos semelhantes, de nós mesmos, da natureza e de um trabalho com significado. Em Cristo, todas as coisas são restauradas. Algumas dessas separações podem ser restauradas logo no início da caminhada cristã. Por exemplo, pessoas cujos sintomas depressivos estavam relacionados à busca de significado podem ser dramaticamente transformadas com um novo relacionamento com o Deus vivo.

No entanto, como consequência da queda, temos ainda nossos corpos biologicamente afetados, personalidades danificadas, relacionamentos problemáticos e desejos pecaminosos, sujeitos a tentações. Fazemos parte de um mundo caído, de natureza caída, no qual a depressão, assim como outras doenças, faz parte. Cristãos também enfrentam a depressão.

Embora tenhamos nos tornado uma nova criação em Cristo Jesus (cf. 2Co 5.17), essa perfeita nova criação só será plenamente realizada quando estivermos unidos a Ele na eternidade. Um dia, seremos libertos de toda dor física e psicológica. Seremos completamente restaurados por ocasião da vinda em glória do Senhor, quando Ele enxugará de nossos olhos toda lágrima. Nesse ínterim, Jesus declarou: “No mundo, vocês passam por aflições; mas coragem, eu venci o mundo.” (Jo 16.33, NAA).

Sobre a depressão
A depressão é uma condição que envolve aspectos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. É um transtorno mental sério que está se tornando cada vez mais comum na sociedade contemporânea1. De fato, a maioria das pessoas que leem este artigo já teve ou terá um amigo próximo ou membro da família que sofre de depressão.

Diversos mecanismos complexos interagem entre si na gênese da depressão. Do ponto de vista biológico, a fisiopatologia é intrincada e ainda há muito a ser estudado. Possíveis mecanismos incluem:
1) alteração de neurotransmissores (serotonina, noradrenalina, GABA, glutamato, dentre outros),
2) anormalidades do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal relacionados ao estresse crônico,
3) inflamação,
4) neuroplasticidade reduzida,
5) alteração da rede neuronal.

Todos esses mecanismos interagem entre si. Além disso, foi demonstrado que fatores psicológicos têm efeito direto no neurodesenvolvimento cerebral, podendo predispor à depressão, ao mesmo tempo que fatores biológicos podem, por sua vez, agravar funcionamentos psicológicos. Vislumbrar essa complexidade, ainda que de modo superficial, nos ajuda a ter mais clareza de por que é necessário um tratamento integrado que envolva todos aspectos.

A depressão pode ter um efeito devastador tanto para o indivíduo quanto para sua família. Ela pode afetar pessoas de todas as origens, incluindo líderes cristãos proeminentes, como aconteceu com Martin Luther King, Inácio de Loyola2, Abraham Lincoln3 e João da Cruz4.

Embora os sintomas de depressão variem de caso a caso, existem algumas características centrais, como a perda de energia, de interesse e, frequentemente, do prazer. Além disso, alterações fisiológicas podem ser observadas no corpo, afetando o apetite, o sono, a capacidade de concentração, a atenção, entre outros aspectos.

A depressão leva as pessoas a experienciar uma sensação de vazio e desesperança. Infelizmente, ela pode ser uma inimiga silenciosa, pois muitos indivíduos sentem-se envergonhados em admitir seus problemas. Especialmente entre os cristãos, é comum o receio de falar abertamente sobre essa condição. Por medo de serem julgados como “maus cristãos” ou “com pouca fé”, evitam buscar ajuda médica específica.

Como enfrentar a depressão como cristão
A cosmovisão cristã enfatiza o pecado, a graça e a dimensão relacional, mostrando como estávamos distantes de Deus e como Ele, por sua iniciativa, buscou reconciliar-se conosco. No entanto, como conciliar a busca espiritual por significado com o conceito médico de depressão clínica? Seriam estas abordagens excludentes e opostas? Como a cosmovisão cristã influencia no tratamento da depressão? A ideia não é responder a todas estas questões, mas levantar alguns pontos de reflexão.

1) Como cristãos, compreendemos que somos seres criados por Deus. Devemos cuidar bem de nosso corpo, que é templo do Espírito Santo (1Co 6.19). Quando a depressão afeta nossa vida é apropriado buscar ajuda de profissionais de saúde qualificados. Assim como não hesitamos em buscar cuidados médicos para outras questões de saúde, como diabetes ou asma, devemos tratar as questões de saúde mental com a mesma seriedade e sem estigma.

2) O filósofo Soren Kierkegaard, que lutou contra sintomas depressivos ao longo da vida, sugeriu que podemos escolher como respondemos espiritualmente a nossos estados emocionais e manter a esperança mesmo em meio ao sofrimento mental. Ele diferenciou a pessoa deprimida lutando contra a angústia daquela em desespero, que perdeu toda a esperança. Segundo Kierkegaard, lutar por manter a esperança pode levar a uma saúde espiritual, mesmo enfrentando a depressão. Encontramos um exemplo semelhante em Salmos 42.3-5, onde o salmista descreve sua angústia, mas também encoraja a si mesmo a manter a esperança em Deus. Como filhos de Deus, podemos encontrar nele o que precisamos para suportar o sofrimento e encontrar propósito em meio a adversidades (Ro 5.3-4; 8.28), mesmo em condições crônicas, como pode acontecer em alguns transtornos de humor.

3) Para alguém que está deprimido, ser compreendido é fundamental. O evangelho revela-nos o próprio Senhor Jesus Cristo, que se tornou humano e experimentou profunda dor e aflição, maior do que qualquer homem já experimentou. Cristo, à nossa semelhança, foi tentado de todas as formas. Deus não está distante, mas se preocupa conosco e compreende nossas lutas (Hb 4.15-16).

4) Um relacionamento vivo com Deus, dentro de uma comunidade comprometida com Sua missão, atende às necessidades existenciais do ser humano. Uma visão realista e bíblica de nós mesmos ajuda a entender e atender nossas necessidades psicológicas. Por meio de Cristo, temos a possibilidade de curar relacionamentos, perdoar, encontrar propósito e trabalho significativo (Mt 6.12; 18.21-22; Lc 23.34).

5) É importante abrir-se e ser honesto consigo mesmo e com pessoas confiáveis em sua comunidade sobre sua depressão. Compartilhar sua história pode encorajar outros a buscar ajuda e mostrar que a depressão é uma condição médica real, tratável e não um motivo de vergonha. A comunidade de fé deve acolher, oferecer amor, aceitação e identidade, ministrando uns aos outros os dons que Deus nos concedeu (cf. Gl 6.2).

Notas:
1. Moreno-Agostino D, Wu YT, Daskalopoulou C, Hasan MT, Huisman M, Prina M. Global trends in the prevalence and incidence of depression:a systematic review and meta-analysis. J Affect Disord. 2021;281(December 2020):235-243. doi:10.1016/j.jad.2020.12.035
2. Lieburg MJ van. Famous Depressives. Ten Historical Sketches. Organon International; 1988.
3. Shenk JW. Lincoln’s Great Depression. The Atlantic. https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2005/10/lincolns-great-depression/304247/. Published 2005. Accessed July 12, 2023.

4. Cross J of the. The Dark Night of the Soul. London: Thomas Baker; 1908. https://www.poetryfoundation.org/poems/157984/the-dark-night-of-the-soul

Aline Jimi Myung Cho (MD) é membro da Igreja Presbiteriana Yonhap, médica psiquiatra geral e da infância e adolescência, vice-coordenadora clínica do Ambulatório do Desenvolvimento dos Relacionamentos e das Emoções no Instituto de Psiquiatria do HC-FMUSP.

André Tsin Chih Chen (MD, MDiv, PhD) é membro da Igreja Presbiteriana do Caminho; médico radio-oncologista do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, HC-FMUSP; coordenador de Pesquisa Clínica do Departamento.

Giovanni Hsiao (MD) é um cristão buscando viver sua vocação de forma redentiva em um mundo em sofrimento; é membro da Igreja Presbiteriana Vida Nova de São Paulo e médico psiquiatra pelo HC-FMUSP.

Wu Tu Hsing (MD, PhD) é pastor titular da Igreja Presbiteriana de Formosa do Brasil TAI-AN; Professor Doutor da Disciplina de Telemedicina do Departamento de Patologia da FMUSP; diretor do Centro de Acupuntura do IOT/HC/FMUSP.


Artigo postado originalmente no Blog da Ultimato.

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